De Arapiraca para o mundo: Émerson Maranhão assina dois premiados documentários com temática LGBTQI+
- ehdearapiraca.com.br
- 22 de dez. de 2021
- 10 min de leitura
Atualizado: 14 de jan. de 2022
Émerson Maranhão nasceu em Arapiraca (AL). Na terra natal, estudou até entrar na faculdade de Jornalismo, em Maceió, no início da de década de 1990. Em Alagoas, trabalhou em redação por três anos. Logo deixou o estado e fixou residência em Fortaleza, no Ceará, a princípio, para estudar Cinema. Por lá, formou-se em Realização Audiovisual e trabalhou durante mais de 20 anos como jornalista, mas com incursões frequentes em várias experiências no fazer cinematográfico. Atualmente, pavimenta, de forma rápida e talentosa, sua estrada profissional atuando no Cinema.
Como diretor e roteirista, Maranhão assina dois premiados documentários sobre a temática LGBT: “Aqueles Dois” (2018), um curta-metragem, e “Transversais” (2021), um longa, que acaba de começar carreira no circuito de festivais. “Transversais”, inclusive, sofreu censura direta por parte do governo federal que considerou o tema inapropriado para receber financiamento público. Mas isso só deu mais fôlego ao projeto.
O blog entrevistou Émerson Maranhão, mais um arapiraquense que faz sucesso, mundo afora, no ofício que abraçou.
Blog – O que de Arapiraca hoje compõe o seu trabalho como diretor e roteirista de cinema? Quando você ainda morava por aqui, já se via dirigindo para o cinema?
Émerson Maranhão – Não é exagero afirmar que, de alguma maneira, Arapiraca está em todo e qualquer trabalho meu. Sou nascido e criado em Arapiraca, do que tenho muito orgulho, aliás. O início da minha formação intelectual e meu olhar primeiro para o mundo foram formados lá. E essas duas situações, chamemos assim, são pilares para o homem que sou hoje, para o meu trabalho e para o que eu intento comunicar através dele. Não teria como ser diferente.
Por óbvio, ao longo das décadas em que vivi longe de Alagoas, e do Agreste alagoano, absorvi outras referências, bebi de outras fontes, tive outras vivências, busquei conhecimentos que não alcancei aí. E o sigo fazendo, porque entendo que isso é fundamental para qualquer criador. Mas a base de tudo vem daí. Os primeiros livros que li, as primeiras amizades que estabeleci (algumas delas, orgulhosamente, mantenho até hoje), a primeira ida ao cinema, os primeiros filmes a que assisti, os primeiros discos, os espetáculos teatrais, os primeiros shows... E aqui, faz-se necessário uma pontuação. Os parâmetros a que me refiro não são apenas os culturais, também os comportamentais e os sociais tiveram e têm grande relevância em minha formação.
O fato de eu ter crescido em Arapiraca, de eu ter me relacionado com as pessoas com quem convivi na infância e na adolescência, de aí ter sido apresentado a querelas sentimentais, que apesar de serem universais têm um tempero único em qualquer lugar onde se deem, impregnam minha personalidade e transbordam para minhas criações.
Enfim, eu conheci o mundo a partir de Arapiraca e isso é determinante para a construção de minha pessoa e de meu intelecto, digamos assim. E, em tempo, sempre quis ser cineasta. Desde minhas memórias mais remotas, o cinema está presente. Tanto no prazer de ser um cinéfilo, quanto na pretensão de ser eu aquele que contasse as histórias através de imagens em movimento. Tanto um quanto outro seguem como objetivo na minha vida.
Blog – Em seu começo profissional aí no Ceará, já assinava colunas e fazia matérias sobre o universo do LGBTQ+. Levá-lo para o cinema foi diferente, passou a ser natural ou você, de alguma forma, hesitou?
Émerson Maranhão – Desde muito cedo, em minha carreira profissional, descobri que ser um bom repórter implicava o esforço para realizar a melhor cobertura possível de qualquer tema que fosse pautado. Claro que todos nós, jornalistas, temos nossas áreas de maior proximidade ou até mesmo de interesse e especialização. Porém, a realidade das redações raramente permite que um jornalista em começo de carreira escolha em qual editoria atuar. Então, apesar de ter a intenção de cobrir a área de Cultura e Comportamento, atuei em todas as editorias imagináveis. O que, aliás, foi-me de muita valia nos anos em que atuei como repórter especial, e escrevia sobre absolutamente tudo (de Política a Esportes). Por isso mesmo, não me assustei quando, em 2005, fui convidado pela direção do jornal em que trabalhava a escrever uma coluna sobre diversidade sexual. À época era uma grande ousadia assinar uma coluna com essa temática em um jornal impresso nordestino de grande circulação. Fomos pioneiros na região, e aqui cito o Nordeste porque a Folha de S. Paulo já publicava uma coluna do gênero. Topei e a coluna durou 15 anos, tornou-se referência nacional, foi muito respeitada (e atacada, também!) e já foi tema de dissertações na academia em Graduações e Mestrados.
Quanto a levar o assunto para o cinema, foi um movimento muito natural para mim. Porque sempre acreditei na potência da história que pretendia contar. Nunca, em nenhum momento, o tema – a transexualidade masculina - me assustou ou intimidou. Talvez isso seja uma herança da vivência jornalística, da empolgação de ter uma boa história na mão. E em primeira mão! Mas, voltando ao tema do curta, não houve hesitação. Só muita gana de realizar.
Blog – “Aqueles Dois”, sua estreia com um curta no cinema, conquistou mais de 20 prêmios e foi selecionado para mais de 60 festivais, dentro e fora do Brasil. Aquela repercussão, de alguma forma, te assustou?
Émerson Maranhão – Tem alguns momentos em que bate, em que o bicho pega. Essa é a verdade. Mas, de uma maneira geral, foi tranquilo. Durante um ano e meio viajei para festivais com “Aqueles Dois” (no ano seguinte veio a pandemia e o filme seguiu sua carreira nos festivais de forma online) e em algumas situações a coisa saiu do controle, digamos assim. Mas do meu controle pessoal, entenda. Por exemplo, logo após a primeira exibição do filme num festival em Madri, em novembro de 2019, caiu a ficha: eu estava na Espanha apresentando um filme meu, num festival superimportante, para uma plateia que tinha sido muito calorosa e recebido o filme superbem. Foi um choque quando juntei as peças e constatei isso! E é engraçado porque nessas horas eu sempre penso: “Ei, eu sou apenas um menino de Arapiraca. O que estou fazendo aqui? Cadê a Praça Marques? Cadê o Calçadão?” (risos). Essa é uma verdade, eu sou apenas um menino de Arapiraca, mas é esse menino de Arapiraca quem segura a onda “toda vez que o adulto balança” ou “que a bruxa me assombra”, como diz o Milton (Nascimento) na famosa canção (“Bola de Meia, Bola de Gude”). E isso tem muito a ver com a primeira pergunta que você me fez.
Ao mesmo tempo, há uma preocupação, um cuidado grande em não superdimensionar o meu fazer cinematográfico, assim como havia com o jornalístico, para que eu não escorregue na vaidade. Na verdade, é um eterno exercício, cara! Agora mesmo, em João Pessoa (PB), onde competi com “Transversais” no 16º FestAruanda, alguns críticos que me procuraram para comentar o filme falaram sobre “Aqueles Dois”. E eles falavam com muita propriedade, citando detalhes da narrativa, aspectos estéticos e tal. E eu: “Putz! Caraleo! Essas pessoas, que eu respeito tanto, debruçaram-se sobre meus filmes...”. É uma sensação de nudez muito grande, a gente acaba se expondo por demais. Porém, não há como ser de outro jeito. Fazer cinema requer muita coragem, muita ausência de pudor.
Blog – Em 2019, após uma live do presidente da República o edital para filmes em TVs pública, com temática LBGTQ+ foi suspenso. Que tipo de impacto causou em vocês, na produção do longa-metragem, após aquele episódio?
Émerson Maranhão – Na verdade, o projeto, à época, era de uma série para TV e estávamos na final do edital. Pela fala do inominável que ora ocupa o Palácio do Planalto, nós fomos os vencedores do edital na região Nordeste, os demais citados na live eram os vencedores de outras regiões. Eu estava dormindo quando da transmissão no Facebook. No dia seguinte, ao acordar, tomei um susto com a quantidade de mensagens no celular e de ligações não atendidas. Enfim, acabamos entrando para a história como os primeiros projetos audiovisuais censurados neste (des)governo. Nossa primeira reação foi de incredulidade. Não era razoável acreditar que a censura havia voltado escancaradamente, em plena democracia, em pleno 2019! Mas foi exatamente o que aconteceu. Quando conseguimos organizar o juízo, quando a poeira baixou, entendemos que seria uma questão de honra não permitir que a censura fosse efetiva e nos determinamos, eu e Allan Deberton, o produtor do projeto, a não medir esforços para que ele se tornasse uma realidade. Por isso transformamos o projeto de série em um filme de longa-metragem e começamos a batalhar para tirá-lo do papel.
Razões não faltavam para isso. Não poderíamos permitir que o silenciamento da população LGBTQ+, que o silenciamento da liberdade de expressão cinematográfica, que o silenciamento de vozes dissonantes se tornasse uma política pública oficial! Porque, verdadeiramente, era disso que se tratava. Era imprescindível reagir a esta atitude autoritária, inadmissível em tempos democráticos. Por isso, nos dedicamos fervorosamente tanto a denunciar a arbitrariedade governamental quanto a procurar viabilizar “Transversais” de outras maneiras.
O que acabou acontecendo, quando ficamos em primeiro lugar no edital da Lei Aldir Blanc para documentários no Ceará. Daí, foi fazer o filme.
Blog - Transversais conta histórias de cinco pessoas trans de diferentes perfis sociais, intelectuais e geográficos. Qual a intenção do filme quando trata o assunto dessa forma?
Émerson Maranhão – Desde que era um projeto de série, “Transversais” tinha por objetivo contar histórias extraordinárias de pessoas ordinárias. E aqui uso a palavra “ordinária” na sua primeira acepção, a “do que é comum, normal, do que está em conformidade com o habitual”. Voltando ao filme, nossa ideia sempre foi mostrar pessoas comuns que tinham trajetórias incomuns. Na verdade, os cinco protagonistas do filme têm jornadas incríveis. Mas que, em muitas vezes, não conseguem ser percebidas como tal por causa do preconceito, por causa da transfobia.
Nossa intenção, e pretensão, assumo, era e é aproximar as plateias desses protagonistas, mas retirando esse filtro pré-julgador que só embaça as visões e afasta as pessoas. O filme traz um olhar muito carinhoso para os protagonistas, porque sempre quisemos que o espectador se sentisse sentado no sofá da casa destes personagens, conversando com eles e elas, sem se importar com suas identidades de gênero. Esta é a ideia.
E já que estamos falando sobre quebrar preconceitos, tirar filtros, a diversidade geográfica, social e intelectual dos personagens está a serviço desta intenção na narrativa fílmica de “Transversais”. São pessoas trans de diversas cidades do Ceará, do interior e da capital, exercendo funções profissionais comumente associadas a pessoas cisgêneros pelo senso geral.
Na verdade, não acredito em filmes monotemáticos. Entendo que existam várias camadas sígnicas e temáticas que podem e devem ser exploradas numa narrativa fílmica. E foi o que tentei fazer em “Transversais”. O longa parte da história destes cinco protagonistas e suas jornadas pessoais para falar de outras questões, que, a meu ver, são muito relevantes no Brasil deste anos 2020, 2021, dos tempos em que vivemos. Mas essa é uma experiência pessoal. Uma das grandes angústias de qualquer realizador audiovisual é que a experiência de cada espectador é única e ele faz as leituras que lhe aprouver. Então, é impossível ter certeza de que a comunicação foi estabelecida ou, quando estabelecida, se foi efetiva. Mas isso é outra história. Talvez, por isso mesmo, seja tão bacana conversar com os espectadores no pós-exibição. Eu, particularmente, adoro fazer isso. Muitas vezes eles descobrem filmes que eu nunca tinha imaginado ao fazer. Isso é incrível!
Blog - O Brasil segue na liderança entre os países que mais matam gays, lésbicas, travestis... Dados do Grupo Gay da Bahia, por exemplo, mostram que de janeiro até outubro deste ano já foram assassinadas 200 pessoas LGBTQI+. Devemos superar os números de 2020. Como diretor de cinema, isso aumenta sua responsabilidade em tratar o tema?
Émerson Maranhão – Sim, são dados assustadores e que não podem, de maneira nenhuma, ser naturalizados. Inclusive, o começo de “Transversais” trata disso. Acho que nossa responsabilidade de atentar para esse tema e denunciar essa situação deplorável é como cidadão, antes de qualquer outra. Claro que quando escolho fazer um filme contando trajetórias de pessoas trans, relatando suas jornadas, eu estou dando um outro passo. Essa responsabilidade aumenta, porque agora passa para o cineasta, para além da do cidadão. Mas isso não é nenhum sacrifício. Sempre entendi a arte como um espaço político, não necessariamente panfletário, mas essencialmente político. E é esse pensamento que me guia na hora de escolher um enquadramento no set ou optar por trecho A ou B de um depoimento na edição. Por óbvio, há intenção nessas decisões do diretor. Intenções dramatúrgicas, sim, mas também discursivas, da construção do discurso que eu pretendo que o filme traga. São decisões! Para o bem e para o mal, e trazem consequências. Mas é nisso, é nesse cinema que eu acredito.
Blog - Para finalizarmos, já está com seu novo trabalho em vista? Pode nos contar sobre do que se trata?
Émerson Maranhão – Rapaz, eu tenho várias possibilidades de novos projetos em vista. A verdadeira questão é como conseguir realizá-los! (risos) Entendo que ainda levará um tempo para que a cultura nesse País retome sua produção do ponto em que foi violentamente interrompida com a chegada desses incapazes ao poder. E esse fator tem que ser levado em consideração. Mas, desesperar jamais! Sigamos na busca efetiva por dias melhores.
Isto posto, tenho um roteiro de longa de ficção em que estou trabalhando há pouco mais de um ano. Foi ele que desenvolvi no Laboratório do Porto Iracema – Cena 15, de dezembro de 2020 a maio de 2021, sob a tutoria de Karim Aïnouz, Murilo Hauser, Nina Kopko e Armando Praça. Este mesmo projeto foi um dos 10 selecionados no Brasil para o Sesc Argumenta, que acabou há pouco, e onde fui orientado pelo Hilton Lacerda. Tem sido muito bom passar por esses laboratórios e ter a oportunidade de ter novos olhares para esta história.
Além desse longa, tenho dois projetos de curtas, ambos também de ficção. Um, inclusive, criei pensando em filmar no agreste alagoano. Veremos o que acontecerá. Quero muito filmar em Arapiraca, para mim será muito especial. É um filme de época e se passa no início dos anos 1940. Inclusive, o roteiro está pronto e foi selecionado para o Laboratório de Projetos do 29º Curta Cinema – Festival Internacional de Curtas-Metragens do Rio de Janeiro.
Já o outro curta se passa em Fortaleza nos dias atuais e é a adaptação de um pequeno conto que escrevi há cerca de 20 anos, pouco depois de me mudar para aqui. Mas ainda não parei para escrever o roteiro, estou naquela fase do borbulhar de ideias.
Por fim, tem um projeto que está começando, em fase embrionária. A convite de um cineasta paulista amigo meu, escrevi o roteiro de um curta, também ficcional. E existe a possibilidade de que nós dirijamos a quatro mãos esse filme. Tomara que dê certo! Acho que é um projeto muito potente! O tema, aliás, foi proposto por este meu amigo.
E, nestes últimos dias, fui tomado por uma ideia para o argumento de um outro longa de ficção. Mas é só a concepção, chamemos assim, um lampejo! Ainda tem um longo caminho até que ele tome forma. No entanto, não deixa de ser significativo que depois de emendar dois documentários seguidos, esteja sonhando em inventar vidas. Afinal, como escreveu lindamente Cecília Meireles, devo estar numa fase em que a vida só seja possível reinventada.
Link trailer de transversais: https://youtu.be/T9DqhA-E55w






Comentários